VISITA PASTORAL DO SANTO PADRE A SUBIACO (ITÁLIA)

ORAÇÃO DO PAPA JOÃO PAULO II A SÃO BENTO PATRIARCA DO OCIDENTE

Sagrada Gruta de Subiaco
Domingo, 28 de Setembro de 1980

No termo desta peregrinação que fiz, juntamente com os Bispos da Europa, a estes lugares tão carregados de espiritualidade e consagrados com a presença de São Bento, desejo levantar ao Santo Padroeiro da Europa uma fervorosa invocação:

1. Ó São Bento Abade! O humilde Sucessor de Pedro e os Bispos da Europa, que tu tanto amaste, viemos a este lugar em que, sendo jovem estudante, procuraste e encontraste o significado mais verdadeiro da tua existência; neste lugar em que, ajudado pelo silêncio, pela reflexão, pela oração e pela penitência, te preparaste para ser dócil instrumento da misericórdia de Deus, que desejava fazer de ti Guia e Mestre para a Europa, para a Igreja e para o Mundo.

Viemos em peregrinação com o fim de exprimir, primeiro que tudo, a nossa imensa gratidão à Trindade Santíssima, pelo dom, que há quinze séculos fez à Igreja; e também com o fim de te dizer a Ti, ó Santo Padroeiro da Europa, a nossa fervorosa admiração pela tua plena correspondência à graça, e escutar aquela mensagem, que tu viveste em ti e transmitiste também às futuras gerações, enraizada na força libertadora do Evangelho, que é "poder de Deus para a salvação de todo o crente" (Rom 1, 16).

Ó santo Patriarca, Tu que não ensinaste diversamente de como viveste (cf. S. Gregório, Diál. II, 36), faz que sintamos nós todos, nesta singular circunstância, a perene actualidade do teu ensinamento, para continuares a ser inspirador de bem para o homem contemporâneo.

2. Tu ensinaste-nos que Deus, Criador e Pai, deve ser o "primeiro servido", mediante a fé viva, o culto decoroso, a adoração devota, a oração assídua, e a alegre obediência à Sua santíssima vontade;

Tu ensinaste-nos que a vida do homem é digna de ser vivida, sem superficial optimismo utópico nem desesperançado pessimismo, porque é dom do amor de Deus e deve ser contínua, perene e constante busca de Deus, o único verdadeiro e autêntico Valor Absoluto.

Tu ensinaste que o cristão, para o ser verdadeiramente, deve "servir na milícia de Cristo Senhor, verdadeiro rei" (Regra, prol.), fazendo de Cristo o centro da própria vida e dos próprios interesses.

Tu nos inspiraste que, junto com o desprendimento interior dos caducos bens da terra, devemos possuir alegre e operosa abertura de espírito e de coração para com todos os homens, irmãos em Cristo, filhos do mesmo Pai celeste.

Tu ensinaste-nos que, para o homem, o trabalho — não só o de quem se inclina sobre os livros, mas também o de quem se inclina, com o rosto banhado de suor e com as mãos doridas, a arrotear a terra — não é humilhação nem alienação, mas elevação, exaltação, mesmo participação na obra criativa de Deus; é contributo consciente e meritório para a construção da cidade terrena, na expectativa da definitiva e eterna.

Tu ensinaste-nos que a fé cristã, longe de ser elemento de divisão ou desagregação, é matriz de unidade, de solidariedade e de fusão mesmo na ordem temporal, social e cultural, e que por isso a liberdade religiosa é um dos direitos inalienáveis do homem.

3. Por isto, ó santo Patriarca, é que te invocamos nesta tarde: levanta os teus largos e paternais braços à Trindade Santíssima e pede pelo Mundo, pela Igreja e, em particular, pela Europa, pela tua Europa, de que és celeste Padroeiro: para que ela não esqueça, não rejeite nem renuncie o extraordinário tesouro da fé cristã, que por séculos animou e fecundou a história e o progresso moral, cívico, cultural e artístico de cada uma das suas Nações; para que, em virtude dessa matriz "cristã", seja portadora e geradora de unidade e de paz entre os povos do Continente e os do Mundo inteiro; e garanta a todos os seus cidadãos a serenidade, a paz, o trabalho, a segurança e os direitos fundamentais, como os que dizem respeito à religião, à vida, à família e ao matrimónio.

Com a tua oração, ó santo Padroeiro da Europa, invocamos suplicantes a intercessão da tua dilecta Irmã.

Ó Santa Escolástica, a ti confiamos em particular as meninas, as jovens, as Religiosas e as Mães, para saberem viver hoje a sua dignidade de serem mulheres, segundo o desígnio de Deus.

São Bento e Santa Escolástica, rogai par nós!

Amém!

VISITA PASTORAL DO SANTO PADRE A SUBIACO (ITÁLIA)


DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II DURANTE A VISITA À SAGRADA GRUTA

Mosteiro Beneditino
Domingo, 28 de Setembro de 1980

Irmãos venerados e caríssimos

1. Hoje, o grande jubileu de São Bento fez-nos vir todos a Subiaco. Já vos deu ocasião de presidir, nas vossas pátrias e nas vossas dioceses, a celebrações importantes, não só para os monges ou monjas, mas para todo o povo de Deus confiado aos vossos cuidados, como eu próprio o fiz em Núrsia e em Monte Cassino. Mas hoje, a escolha do lugar santificado por São Bento — o Sacro Speco — e a composição da vossa assembleia dão relevo excepcional a esta celebração.

Decorreu um milénio e meio a partir do nascimento deste grande homem, que mereceu no passado o título de Patriarca do Ocidente, e foi chamado nos nossos dias, pelo Papa Paulo VI, Padroeiro da Europa. Já estes títulos testemunham que a irradiação da sua pessoa e da sua obra ultrapassou as fronteiras do seu país e também não se limitou à sua família beneditina: esta conheceu aliás magnífica expansão e foi provindo de numerosos países e continentes que os seus filhos e filhas se encontraram, há uma semana, em Monte Cassino, para venerarem a memória do Pai comum e Fundador do monaquismo ocidental.

Hoje, em Subiaco, são os representantes dos Episcopados da Europa que se juntam para testemunhar, em presença dos Bispos do mundo inteiro reunidos em Sínodo, até que ponto São Bento de Núrsia está inserido profunda e organicamente na história da Europa, e em particular quanto lhe são devedoras as sociedades e as Igrejas do nosso continente, e como, na nossa época crítica, elas voltam os olhares para aquele que foi designado pela Igreja como seu Padroeiro comum.

Consagrando a 24 de Outubro de 1964 a Abadia de Monte Cassino, reerguida das ruínas da guerra, Paulo VI notava as duas razões que fazem sempre desejar a austera e doce presença de São Bento entre nós: "a fé cristã que ele e a sua Ordem pregaram na família dos povos, especialmente na família da Europa..., e a unidade pela qual o grande monge, solitário e social, nos ensinou a sermos irmãos e pela qual a Europa se tornou cristã". "Foi para este ideal da unidade espiritual da Europa ficar desde agora sagrado e intangível" que o meu venerado Predecessor proclamou nesse dia São Bento "padroeira e protector da Europa". E o breve solene Pacis nuntius que consagrava esta decisão, lembrando os méritos do Santo Abade, "mensageiro de paz, agente de união, mestre de civilização, arauto da religião de Cristo e fundador da vida monástica no Ocidente", reafirmava que ele e os seus filhos, "com a cruz, o livro e a charrua", trouxeram "o progresso cristão às populações que se estendem do Mediterrâneo à Escandinávia, da Irlanda às planícies da Polónia". 

2. São Bento foi antes de tudo homem de Deus. Tornou-se tal, seguindo de maneira constante o caminho das virtudes indicadas no Evangelho. Foi verdadeiro peregrino do Reino de Deus. Verdadeiro homo viator. E esta peregrinação foi acompanhada por uma luta que durou toda a sua vida: "batalha primeiro contra si mesmo, para combater o "homem velho" e criar cada vez mais lugar, nele próprio, para o "homem novo". O Senhor permitiu que, graças ao Espírito Santo, esta transformação não resultasse só em favor dele, mas se tornasse fonte de irradiação, a penetrar a história dos homens, penetrando sobretudo a história da Igreja.

Subiaco foi e continua sendo etapa importante deste processo. Por um lado, foi lugar de retiro para São Bento de Núrsia: nele se retirou desde a idade de 15 anos para estar mais perto de Deus. E, ao mesmo tempo, lugar que manifesta bem o que é ele próprio. Toda a sua história ficará marcada por esta experiência de Subiaco: a solidão com Deus, a austeridade de vida, e a partilha desta vida simplicíssima com alguns discípulos, pois foi aqui que ele principiou uma primeira organização da vida cenobítica.

Por isso venho também eu, convosco, a este alto lugar do Sacro Speco e do primeiro mosteiro.

3. Homem de Deus, Bento foi-o relendo continuamente o Evangelho, não apenas com a finalidade de o conhecer, mas também para o traduzir por inteiro em toda a sua vida. Poder-se-ia dizer que o releu em profundidade — com toda a profundidade da sua alma —, e que o releu na sua extensão, segundo a medida do horizonte que tinha diante dos olhos. Este horizonte foi o do mundo antigo a ponto de morrer e o do mundo novo que estava para nascer. Tanto na profundidade da sua alma como no horizonte deste mundo, consolidou todo o Evangelho: o conjunto do que constitui o Evangelho, e ao mesmo tempo cada uma das suas partes, cada uma das passagens que a Igreja relê na liturgia e mesmo cada frase.

Sim, o homem de Deus — "Benedictus", o Abençoado, Bento — deixa-se penetrar por toda a simplicidade da verdade que nele está contida. E vive este Evangelho. E vivendo-o, evangeliza. 

Paulo VI deixou-nos em herança São Bento de Núrsia como Padroeiro da Europa. Que desejava dizer-nos com isto? Primeiro que tudo, talvez, que devemos entregar-nos sem cessar à tradução do Evangelho, que o devemos traduzir inteiramente e em toda a nossa vida. Que devemos relê-lo com toda a profundidade da nossa alma e completamente segundo a dimensão do horizonte do mundo que temos diante dos olhos. O Concílio Vaticano II situou firmemente a realidade da Igreja e da sua missão no horizonte do mundo que dia após dia se lhe torna contemporâneo.

A Europa constitui parte essencial deste horizonte. Enquanto continente, onde se encontram as nossas pátrias, ela é para nós um dom da Providência, que no-la confiou ao mesmo tempo como obra para ser levada a termo. Nós, como Igreja, como Pastores da Igreja, devemos reler o Evangelho e anunciá-lo na medida das tarefas que são inerentes à nossa época. Devemos relê-lo e pregá-lo à medida das expectativas que não param de se manifestar na vida dos homens e das sociedades e ao mesmo tempo à medida das contestações que encontramos na vida de uns e de outros. Cristo não deixa nunca de ser "a expectativa dos povos" e simultaneamente não cessa também de ser o "sinal de contradição".

Sim, seguindo as pisadas de São Bento, a tarefa dos Bispos da Europa está em empreender a obra da evangelização neste mundo contemporâneo. Fazendo isto, eles referem-se ao que foi elaborado e construído desde há quinze séculos, ao espírito que o inspirou, ao dinamismo espiritual e à esperança que marcou esta íniciativa; mas é também obra a que se devem meter ombros de maneira renovada, à custa de novos esforços, em função do contexto actual. 

4. É neste quadro da evangelização que toma todo o seu sentido a Declaração dos Bispos da Europa, acabada de ler: "Responsabilidades dos cristãos perante a Europa de hoje e de amanhã". Este documento, elaborado em comum, é fruto apreciável da responsabilidade colegial dos Bispos do conjunto do continente europeu. E sem dúvida a primeira vez que a iniciativa toma esta amplidão. Trata-se de um documento, de alguma maneira, da Igreja católica na Europa, que é representada, de modo especial, pelos Bispos como Pastores e Mestres da fé. Saúdo com alegria este sinal animador de uma responsabilidade colegial que progride na Europa, de uma unidade melhor afirmada entre os Episcopados. Estes Episcopados encontram-se, com efeito, em países com situações muito diversas, quer se trate dos sistemas sociais ou económicos, da ideologia dos seus Estados ou do lugar da Igreja católica — que forma umas vezes maioria indiscutível, outras pequena minoria ao lado das outras Igrejas — quer se trate em relação com uma sociedade muito secularizada. Confiando no carácter benéfico, estimulante, das trocas e da cooperação, como muitas vezes tenho dito, animo de toda a alma a que se prossiga em tal colaboração, que se inscreve bem na linha da Concílio Vaticano II. Não é aliás estranha à prática beneditina e cisterciense da interdependência e da cooperação entre os diferentes mosteiros ao longo da Europa. 

Na Declaração tornada póblica hoje e neste alto lugar, exprimis vós a justo título a solicitude por uma unidade eclesial alargada. A Europa é, com efeito, o continente em que as separações eclesiais tiveram origem e se manifestaram clamorosamente. Quer dizer que as Igrejas na Europa — as nascidas da Reforma, a Ortodoxia e a Igreja católica, que permanecem ligadas de maneira especial à Europa — têm responsabilidade particular no caminho da unidade: o verdadeiro ecumenismo deve desenvolver-se nela com intensidade, no plano da compreensão recíproca, dos trabalhos teológicos e da oração.

Do mesmo modo, quanto às comunidades católicas dos outros continentes, aqui representadas, a Igreja da Europa deve caracterizar-se pelo acolhimento, pela serviço e pelo intercâmbio recíprocos para ajudar estas Igrejas-irmãs a encontrarem o seu rosto próprio na unidade da fé, dos sacramentos e da hierarquia.

Em resumo, é testemunho comum da vossa solicitude pastoral hodierna, caros Irmãos, que damos hoje, em função das necessidades e das expectativas. Não tenho de retomar aqui o que está longamente exposto nesse Documento comum. Trata-se de delinear um caminho de evangelização para a Europa, e de o seguir com os nossos fiéis. É obra para ser continuada e retomada sem cessar. O próximo Simpósio dos Bispos da Europa não tem por tema "A auto-evangelização da Europa"? Isto leva-nos ao grande projeto, à iniciativa sem paz de São Bento, de que certos caracteres específicos têm enormes consequências humanas, sociais e espirituais.

5. São Bento de Nursia tornou-se Padroeiro espiritual da Europa porque, como o profeta, fez do Evangelho e seu alimento, e provou-lhe ao mesmo tempo a doçura e e amargor. O Evangelho constitui, com efeito, a totalidade da verdade sobre o homem: é simultaneamente a alegre nova e também a palavra da cruz. Por meio dele vê-se reviver, de diversas maneiras, o problema do rico e do pobre Lázaro — com o qual a liturgia de hoje nos familiarizou — enquanto drama da história e problema humano e social. A Europa inscreveu este problema na sua história; levou-o bem além das fronteiras do seu continente. Com ele, semeou a inquietação no mundo inteiro. Desde meados do nosso século, este problema voltou, em certo sentido, à Europa, põe-se assim na vida das suas sociedades. Não deixa de ser a fonte das tensões. Não deixa de ser a fonte das ameaças.

Destas ameaças, já falei no primeiro dia do ano, fazendo alusão a este grande aniversário de São Bento; lembrava, diante dos perigos de guerra nuclear que ameaçam a existência mesma do mundo, que o espírito beneditino é espírito de salvação e promoção, nascido da consciência do plano divino de salvação e educado na união quotidiana da oração e do trabalho". "Está nos antípodas de qualquer programa de destruição".

A peregrinação que realizamos hoje é ainda portanto grande brado e nova súplica pela paz na Europa e no mundo inteiro. Pedimos que as ameaças de autodestruição, que as últimas gerações fizeram levantarem-se no horizonte da sua própria vida, se afastem de todos as povos do nosso continente e de todos os outros continentes. Pedimos que se afastem também as ameaças de opressão de uns para com os outros: a ameaça da destruição dos homens e dos povos que, durante as suas lutas históricas e à custa de tantas vítimas, adquiriram o direito moral de serem eles mesmos e decidirem deles mesmos. 

6. Quer se trate do mundo que no tempo de São Bento se limitava à antiga Europa, quer do mundo que, ao mesmo tempo, estava prestes a nascer, o horizonte de ambos passava através da parábola do rico e do pobre Lázaro. No momento em que o Evangelho, a Boa Nova de Cristo, penetrava na Antiguidade, esta suportava o peso da escravidão institucional. Bento encontrou no horizonte da sua época as tradições da escravidão e simultaneamente relia no Evangelho uma verdade desconcertante sobre o reajustamento definitivo da sorte do rico e de Lázaro, de acordo com a ordem do Deus de justiça, e lia também a alegre verdade sobre a fraternidade de todos os homens. Desde o princípio o Evangelho constituiu, portanto, um apelo a que se ultrapassasse a escravidão em nome da igualdade dos homens aos olhos do Criador e Pai. Em nome da cruz e da Redenção.

Esta verdade, esta Boa Nova da igualdade e da fraternidade, não foi São Bento que a traduziu em Regra de vida? Traduziu-a não somente em regra de vida para as suas comunidades monásticas, mas, ainda mais, em sistema de vida para os homens e os povos. "Ora et labora". O trabalho, na antiguidade, era a sorte dos escravos, o sinal do aviltamento. Ser livre significava não trabalhar, e portanto viver do trabalho dos outros. A revolução beneditina coloca o trabalho no coração mesmo da dignidade do homem. A igualdação dos homens à volta do trabalho torna-se, através do mesmo trabalho, um como fundamento da liberdade dos filhos de Deus, da liberdade graças ao clima de oração em que vive o trabalho. Aqui está com exactidão uma regra e programa. Programa que inclui dois elementos. A dignidade do trabalho não pode, com efeito, ser tirada unicamente de critérios materiais, económicos. Deve amadurecer no coração do homem. Não pode amadurecer em profundidade, senão por meio da prece. Porque é a oração — e não são apenas os critérios da produção e do consumo — o que diz definitivamente à humanidade o que é o homem do trabalho, esse que trabalha suando no rosto e fatigando-se também no espírito e nas mãos. Diz-nos que não pode ser escravo mas que é livre. Como afirma São Paulo: "O que é chamado pelo Senhor, sendo servo, é um liberto do Senhor" (1 Cor 7, 22). E Paulo, que não julgou indigno de um Apóstolo "cansar-se a trabalhar com as suas mãos" (1 Cor 4, 12), não teme mostrar aos anciãos de Éfeso as suas próprias mãos que proveram às suas necessidades e às dos companheiros (cf. Act 20, 34).

E na fé em Cristo e na oração que o trabalhador descobre a sua dignidade. E ainda São Paulo que explica: "Deus enviou aos nossos corações o Espírito do Seu Filho que brada 'Abbá! Pai!. Portanto, já não és escravo mas filho" (Gál 4, 6-7).

Não vimos recentemente homens que, perante toda a Europa e o mundo inteiro, uniam a proclamar a dignidade do seu trabalho a oração?

7. Bento de Núrsia, que pela acção profética procurou tirar a Europa das tristes tradições da escravidão, parece portanto falar, passados quinze séculos, aos numerosos homens e às múltiplas sociedades que é preciso libertar das diversas formas contemporâneas de opressão do homem. A escravidão pesa sobre quem está oprimido, mas também sobre o opressor. Não conhecemos, no decurso da história, potências, impérios, que oprimiram as nações e os povos, em nome da escravidão ainda mais forte da sociedade dos opressores? A palavra de ordem "ora et labora" é mensagem de liberdade.

Além disso, esta mensagem beneditina não é hoje, no horizonte do nosso mundo, apelo para nos libertar da escravidão do consumo, de uma maneira de pensar e de julgar, de estabelecer os nossos programas e de orientar todo o nosso estilo de vida apenas em função da economia?

Nestes programas desapareciam os valores humanos fundamentais. A dignidade da vida está sistematicamente ameaçada. A família está ameaçada, quer dizer, este laço essencial recíproco, fundado na confiança das gerações, que encontra origem no mistério da vida e plenitude em toda a obra da educação. É também todo o património espiritual das nações e das pátrias que está ameaçado.

Somos nós capazes de enfrear tudo isto? De reconstruir? Somos capazes de afastar dos oprimidos o peso do constrangimento? Somos capazes de convencer o nosso mundo de que o abuso da liberdade é outra forma de constrangimento?

São Bento foi-nos dado como Padroeiro da Europa do nosso tempo, do nosso século, para testemunhar que somos capazes de tudo isto.

Só é preciso que assimilemos de novo o Evangelho no mais profundo das nossas almas, no quadro da nossa época actual. Devemos aceitá-lo como a verdade e consumi-lo como alimento. De novo se descobrirá então, pouco a pouco, o caminho da salvação e da restauração, como nesses tempos longínquos em que o Senhor dos Senhores colocou Bento de Núrsia como candeia em cima do velador, como farol no caminho da história.

É Ele, com efeito, que é o Senhor de toda a história do mundo, Jesus Cristo, que, de rico que era, se fez pobre por nós, para nos enriquecer com a sua pobreza (cf. 2 Cor 8, 9).

A Ele honra e glória pelos séculos!

Visita pastoral do Santo Padre a Montecassino


DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II DURANTE O ENCONTRO COM A POPULAÇÃO NO FINAL DA SUA PEREGRINAÇÃO

Sábado, 20 de Setembro de 1980

1. Grande, sincera alegria invade o meu coração ao encontrar-me aqui em Cassino, no meio de vós.
Não escondo que este nome é para mim sobremaneira querido, também porque ligado à recordação dos mil compatriotas meus que, derramando heroicamente o juvenil sangue, começaram a libertação, de Monte Cassino e de toda a zona circunstante, dos horrores da guerra, que aí tinha sido feroz por longos meses.

A minha visita hodierna realiza-se em nome de São Bento, de quem este ano se celebra, como sabeis, o 15° centenário do nascimento circunstância que faço votos venha a oferecer válido contributo para a renovação da vida eclesiástica e humana, em sentido autenticamente cristão.

2. São Bento pertence à história do mundo inteiro. O grande Papa Pio XII chamou-lhe "Pai da Europa", e o meu Predecessor de venerável memória Paulo VI veio aqui pessoalmente proclamá-lo "Patrono primário de toda a Europa", insistindo com este título na obra maravilhosa realizada pelo Santo graças à Regra e a muitíssimos discípulos, em favor do começo da cultura e da civilização europeia. A doutrina do grande Patriarca transpôs contudo, no decorrer dos séculos, os confins do Continente difundindo em todo o mundo — graças ao trabalho do espírito e das mãos, e sobretudo ao exemplo de virtude e de espírito de contempla oferecido pelos seus filhos — os frutos que a preciosa Regra encerrava como germes fecundos.

A doutrina de São Bento é simplesmente evangélica: isto explica-lhe a perene vitalidade e ao mesmo tempo a fascinação singular. Não tem em vista senão fazer, do monge, investigador e conquistador de Deus, da Sua santidade e do Seu reino. Por isso, manifesta toda a sua força em promover as virtudes que são basilares no Evangelho: o amor de Deus e, do próximo, o espírito de fé, a humildade, a obediência; a oração e a caridade. Toda a estrutura institucional nela fundada, tão sólida que desafiou mais de 14 séculos de história; converge no sentido de criar o clima para realizar eficazmente na prática aqueles a que o Santo chama os "instrumentos das boas obras" (c. 4).

Sobre o modelo da família natural, e da sobrenatural que é a Igreja, o grande Legislador constrói a sua "escola do serviço do Senhor" (Pról. 45), como forma típica de família, que encontra um seu fundamental principio na "estabilidade da congregação" (4, 78). As relações entre o Abade e os irmãos, e as relações mútuas entre os irmãos mesmos, a autoridade e a obediência, a submissão e os direitos da razão, o incitamento ao heroísmo e a consideração da debilidade, a intransigência para o necessário e a indulgência para o acessório, tudo é moderado com um equilíbrio romano e cristão, que faz da Regra uma obra-prima de sabedoria e de discrição.

Naquela "casa de Deus" (Reg. 31, 19; 53, 22; 64, 5) que é o mosteiro, deve reinar o amor, que, originado e fomentado pela fé, pode chamar-se pilastra fundamental de todo o edifício social e espiritual, criado por este génio gigantesco. O amor invade e inspira tudo, como em toda a verdadeira e sã família: basta recordar aquele testamento da caridade que é o capítulo 72 da Regra. E é deste amor, sentido e vivido realmente como dom de Deus, que nasce aquela alegria, em virtude da qual "ninguém na casa de Deus deve perturbar-se ou entristecer-se" (Reg. 31, 19). Realidade inefável, causa e efeito desta alegria, é a paz, doce alvo a que o Legislador aspira, como a termo e garantia da saúde espiritual da família monástica: "et ita omnia membra erunt in pace" (34, 5): e assim todos os membros deste corpo místico, que surgiu do amor por Cristo, estarão em paz.

3. Filhos caríssimos, quis aludir brevemente a estes princípios e a estes traços da fisionomia particular da Regra beneditina, para todos podermos descobrir nela lições evidentes e salutares para o nosso tempo.

O amor para com Deus antes de tudo, a generosa e plena observância das suas leis, a necessidade da oração e do contacto com Ele, e o dever primário do louvor de adoração e de acção de graças são valores que nada perderam da sua actualidade. Deus e o Seu Cristo devem entrar profundamente no tecido da intimidade individual como no da vida pública e comunitária: família, escola, cultura, trabalho, política, "mass media", desporto e divertimento.

Amando a Deus, amamos, com isso mesmo, o próximo; respeitando os direitos alheios, especialmente o basilar da vida, reconhecemos os dons maiores da omnipotência e da bondade divina.

São Bento exorta-nos a fazer verdadeiramente da família um santuário, um centro de amor cristão, em que pais e filhos sintam a doce obrigação de se amarem, e por isso de compadecerem-se e sacrificarem-se uns pelos outros. Ele convida-nos, além disso, a transformar a humanidade inteira numa família cristã de povos, sobre a base dos valores introduzidos pela Regra no fermento histórico, criador da unidade de fé da Europa. Amem-se os povos, conhecendo-se irmãos em Cristo; todos abram os olhos e os corações para os mais necessitados; as relações políticas e económicas levem sempre a um sincero reforçamento da solidariedade humana e cristã.

Assim poderemos ter a esperança de conquistar a paz. Paz: esta doce palavra devemos pronunciá-la especialmente em Cassino, teatro de uma incrível e absurda guerra de nações, apesar de se orgulharem de muita civilização. Esta cidade durante longos meses consumida por incursões, bombardeamentos e incêndios, por fim foi totalmente destruída! A gloriosa abadia de Bento, centro mundial de piedade, cultura e arte, barbaramente arrasada! Todos os populosos burgos circunstantes, activos de honesto trabalho; todos os vossos belos campos, tão férteis e viçosos — tudo reduzido a charneca desolada, infestada pelo sezonismo. Para quê recordar tudo isto, senão para gritar daqui a todos, particulares e colectividades, que toda a guerra é sempre um fratricídio? senão para proclamar a exigência, a segurança e a alegria da paz? 

4. Esta vossa cidade, outrora florescente de vilas e monumentos no período clássico da romanidade, transferida na Idade Média para o sítio actual e, por assim dizer, refundada pelo abade São Bertário e governada pelos filhos de São Bento, rica de acontecimentos históricos que sempre a ligaram àquele Monte Cassino, de que ela é "o dorso" (Dante, Par. 22, 37) pelo seu egrégio título de glória; esta cidade agora renascida das suas ruínas por dom de Deus, de Nossa Senhora da Assunção e de São Bento, e pelo valor do vosso inteligente trabalho, deve ser hoje e amanhã não uma lembrança da morte infligida pelas guerras, mas fortíssimo e insistente convite à vida operosa e alegre da paz.

Disso é símbolo e esperança o incremento que ela mostra ao multiplicarem-se indústrias e oficinas, como ao florescerem escolas de todos os tipos, mesmo das que já fazem dela, e farão ainda mais, uma cidade universitária. São estes os jucundos frutos da paz.

Desejo recordá-lo de modo particular neste momento delicado e difícil, em que tantas pessoas se sentem ameaçadas pelas consequências da situação económica. Sei bem quão importante é, para a serenidade familiar, a segurança do lugar de trabalho. De coração participo nas ansiedades e nas preocupações das famílias, incertas quanto às perspectivas que vêem desenhar-se no horizonte, e exprimo portanto o augúrio de que, devido ao sentido de responsabilidade e ao generoso esforço de todos, se possa conseguir encontrar uma solução justa e respeitadora dos direitos de cada um.

O meu augúrio estende-se a toda a "Terra de São Bento", provada a seu tempo pela tempestade devastadora da guerra, e agora molestada, ora mais ora menos, por problemas de ordem social e económica: toda a comunidade cívica, lembrada da protecção paternal a ela mostrada pelo Santo em tantos séculos de história, sinta-se por ele convidada a trabalhar, a construir e a rezar pela vinda universal da paz na justiça.

Sei que o vosso Patriarca, nos meses passados, se fez peregrino para visitar, saudar e abençoar todos os centros da sua "Terra". Em tal "peregrinação" com muitos já se encontrou, acolhido sempre com grande júbilo e devoção; os outros visitá-los-á, recomeçando o percurso dentro em breve. Não foi, e não deverá ser, um facto de carácter só exterior e, por assim dizer, folclórico. São Bento vem para recordar a sua mensagem perpétua de amor e de paz. É mensagem que faço minha: a paz esteja convosco e com o mundo inteiro! Ao fazer votos por que a intercessão do santo Monge disponha os ânimos para a receberem e para nela se empenharem com generosidade, de todo o coração vos abençoo a vós, aqui presentes, esta dilectíssima Diocese Cassinense, o seu Bispo, o seu clero, as comunidades religiosas, a Igreja e o mundo, que olham para São Bento como promotor de paz, de ordem e de santidade.

Visita pastoral do Santo Padre a Montecassino


DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II ÀS AUTORIDADES CIVIS DE CASSINO

Sábado, 20 de Setembro de 1980

Senhor Ministro
Senhor Presidente da Câmara
Caríssimos fiéis de Cassino

Agradeço sentidamente ao Senhor Presidente da Câmara as cordiais palavras com que, também em nome de toda a cidade, expressou sincera deferência para com a minha pessoa e sentimentos de alegria pelo encontro de hoje.

Com igual cordialidade manifesto o meu reconhecimento ao Senhor Ministro que houve por bem apresentar-me as boas-vindas em nome do Presidente da República e do Governo Italiano.

É para mim motivo de particular alegria poder encontrar-me hoje na ilustre cidade de Cassino, seja pelo caloroso acolhimento a mim reservado, seja pelos motivos de nobreza que caracterizam esta Comunidade. A sua grandeza remonta já à idade romana, mas foi depois o monge Bento que lhe deu realce fundando aqui o seu célebre Mosteiro, que veio a ser nos séculos farol luminoso de promoção da cultura e do trabalho, e também da vida religiosa.

Sei, contudo, que também hoje Cassino tem válidos motivos de orgulho, que consistem nas suas virtudes cívicas e na tenaz laboriosidade dos seus habitantes. Não posso deixar de formular os mais sentidos votos por que as melhores qualidades dos habitantes de Cassino se desenvolvam sempre em maior grau, de modo a dar vida a um contributo cada vez mais construtivo para o bem da pátria italiana e da Igreja católica.

Em particular, faço votos por que a recordação das duras provações da guerra, sofridas por esta terra, constitua estímulo para uma fraternidade humana cada vez mais profunda, e para uma serena convivência civil, na ordem e na paz.

De coração invoco sobre todos os cidadãos da querida Cassino abundantes graças celestiais.